James Smith, no livro “Você é aquilo que ama”, conta sobre uma parábola introdutória (que vai servir aqui com o mesmo propósito) feita por David Foster Wallace em um discurso no Kenyon College:
“Dois peixes jovens nadavam juntos numa direção, quando encontraram um peixe mais velho nadando no sentido contrário. O peixe mais velho os cumprimenta e diz:
– Bom dia, garotos. Como está a água?
Os dois peixes mais jovens seguem nadando e, após algum tempo, um vira para o outro e diz:
– O que é esse negócio chamado água?”
“O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da vida (e a vida se manifestou, e nós a temos visto, e dela damos testemunho, e vo-la anunciamos, a vida eterna, a qual estava com o Pai e nos foi manifestada), o que temos visto e ouvido anunciamos também a vós outros, para que vós, igualmente, mantenhais comunhão conosco. Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo. Estas coisas, pois, vos escrevemos para que a nossa alegria seja completa.” (1Jo 1.1-4)
“O que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos” tem nos transformado! Sim, inicio pelo fim. Começo essa breve reflexão com uma sentença que há algum tempo tem me feito pensar e repensar acerca daquilo em que invisto minha atenção, seja vendo, ouvindo ou mesmo manuseando. O que temos visto e ouvido tem nos transformado ou, dizendo de uma outra forma, nós somos moldados por aquilo que contemplamos.
Estou lendo um livro escrito na década de 1980 cujo título é “Amusing Ourselves to death” (algo como “Nos entretendo até a morte” ou “Mortos de entretidos”). Esse livro tem chamado minha atenção, dentre outras coisas, por enfatizar a grande mudança na forma como os americanos vivem e enxergam o mundo em virtude da transição de uma era marcada pela palavra escrita (tipografia) para uma era marcada pela imagem (especialmente em virtude da televisão). Em 1985, há 33 anos, Neil Postman bradava: “Vivemos na era do Show Business”. Nessa era, o “silêncio foi substituído pelo ruído”, as imagens de alta rotatividade são a principal ferramenta de comunicação e o entretenimento é o meio e a mensagem. Em resumo, isso é o que nossa cultura tem visto e ouvido. Esse é o mundo no qual as pessoas de nossa época estão submersas, inclusive muitos cristãos desavisados! Penso, portanto, que um dos principais méritos desse livro é ser uma resposta para a pergunta dos peixes mais novos: “o que é esse negócio chamado água?”.
E quanto a nós? Em que águas nós temos nadado? Em que mundo nós temos habitado? Em quê temos repousado nossos olhos e ouvidos? Com o que temos nos habituado? Quais são os rituais, as rotinas, as liturgias, que permeam nossa vida? O que marca as nossas conversas? Ou, resumindo: “o que temos visto e ouvido?”
Você já pensou sobre isso? Ou tem nadado como os peixes mais jovens, sem sequer saber que existe uma coisa chamada “água”? Recentemente, tirei um tempo para pensar sobre minha rotina semanal…
Em um dia típico, a primeira coisa que faço ao acordar é desligar o despertador do celular. Depois disso, já com o aparelho em mãos, costumo conferir whatsapp para ver se há algo urgente ou interessante. Daquele momento em diante, até a hora em que preciso colocar minha filhas para dormir, passo pouco tempo sem estar diante de alguma tela. Seja a tela do celular, seja a tela do computador no qual trabalho. Além disso, percebo que tenho poucos momentos de silêncio. Pela manhã, logo cedo, o som agradável das crianças chamando “papai, papai” e chorando querendo sair do berço. No carro, alguma música no fundo. No trabalho, ligações, conversas na sala e outros ruídos típicos de um escritório. Pela noite, após colocar minhas filhas para dormir, depois de jantar e conversar com minha esposa, finalmente pareço abrir mão do digital, voltando para o velho e analógico livro, terminando o dia com a leitura da Biblia. Entretanto, percebo que luto para, nesses momentos, evitar o som das notificações de aplicativos que me interessam e para não gastar ainda mais tempo conferindo qualquer novidade irrelevante que esteja sendo discutida nas mídias sociais.
Não penso que a maioria das pessoas seja tão diferente de mim, nem mesmo os cristãos. Vejo, quando vou almoçar, que a principal companhia, mesmo dos que estão acompanhados, parece ser seu telefone. Na igreja, muitos têm dificuldade de colocar o celular no modo avião e aproveitam aquele instante que a distração vem para checar se existem novidades no whatsapp ou, até mesmo, para acompanhar o resultado de algum jogo de domingo. Não quero aqui advogar um retorno aos “melhores tempos”, quando não haviam tais tecnologias. Não é isso! Não negligencio que elas são uma bênção de Deus. Na verdade, meu ponto não é tanto com elas, mas as uso para chamar atenção para um fato que talvez você não perceba: essa rotina que eu descrevi é um ritual, é um hábito que não só é moldado por nós, mas que também nos molda. Somos transformados pelo que vemos e ouvimos.
Alguns, até aqui, talvez já estejam se perguntando: “o que isso tem a ver com o texto de 1Jo 1.1-4?”
Ora, o que João via e ouvia? O que moldava João? O que o estava transformando? Em que mundo ele vivia? Em que água ele nadava?
O texto de 1João demonstra que existia algo diante dos olhos do apóstolo, diante de seus ouvidos e de suas mãos. Ele se refere a esse algo, que na verdade é um alguém, de inúmeras formas: aquele que era desde o princípio, o Verbo da Vida, o filho de Deus, Jesus Cristo. Um dos aspectos centrais da primeira carta de João é o combate a ideia de que Jesus não teria vindo em carne, o que explica esse prólogo tão permeado pela noção de que Cristo foi alguém visto, ouvido e tocado.
Essa foi uma carta que, provavelmente, foi escrita muito tempo depois da morte de Cristo, mas as memórias do velho apóstolo João sobre seu salvador ainda eram vívidas diante dele. Ele ainda conseguia lembrar de quando havia sido chamado por Cristo estando em companhia de seu pai e seu irmão (Mt 4.21). Os discursos de Jesus, longamente registradas no evangelho que ele havia escrito, continuavam frescos em sua memória. A luz do momento da transfiguração de Cristo ainda brilhava diante de seus olhos (Mt 17.1-13). Ele ainda rememorava o pão compartilhado por Cristo e a sensação de poder encostar-se em seu peito na Santa Ceia (Jo 13.23-25). João não havia se esquecido do julgamento e morte de Cristo. Ele ainda recordava do exato momento em que disse para Pedro, ao reconhecer o Cristo ressurreto os direcionando sobre onde deveriam lançar a rede (Jo 21.7): “É o Senhor!”. Sim, Jesus havia prometido que iria enviar um Consolador, o Espírito Santo, e que Ele não só ensinaria os apóstolos, mas os faria lembrar tudo aquilo que Jesus os havia dito (Jo 14.26). E João se lembrava.
Nos ouvidos de João ecoavam as palavras de Cristo, que ele próprio registrou:
“Eu sou o pão da vida. Aquele que vem a mim nunca mais terá fome; aquele que crê em mim nunca mais terá sede.” (Jo 6.35)
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim.” (Jo 14.6)
“Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu filho unigênito para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” (Jo 3.16)
“E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste.” (Jo 17.3)
João via Cristo! João ouvia Cristo! João vivia no mundo de Cristo! João se movia em Cristo! João vivia para a Glória de Cristo! A água na qual João nadava era o próprio Cristo!
Nesse ponto, podemos delinear um contraste significativo, especialmente quando lembramos do Salmo 115, que usa uma linguagem similar, mas para falar não daqueles que habitam na cidade de Deus, mas dos que habitam na cidade dos homens!
“Prata e ouro são os ídolos deles, obra das mãos de homens. Têm boca e não falam; têm olhos e não vêem; têm ouvidos e não ouvem; têm nariz e não cheiram. Suas mãos não apalpam; seus pés não andam; som nenhum lhes sai da garganta. Tornem-se semelhantes a eles os que os fazem e quantos neles confiam.” (Sl 115)
O salmista está nos falando, primeiro, sobre os ídolos daqueles que não seguem a Deus. Os falsos deuses têm olhos mas não veem, têm boca mas não falam, têm ouvidos mas não ouvem, têm mãos mas não tocam! Só que o mais chocante disso tudo vem no verso 8: “tornem-se semelhantes a eles os que os fazem e quantos neles confiam”. O que isso significa? Isso significa que aquele que coloca o seu amor último nos falsos deuses se torna como eles. Não enxerga! Não escuta! Não apalpa! Os ímpios vivem no mundo de Deus como cegos e surdos. Eles vivem no mundo de Deus, no mundo inundado por Deus, no mundo sustentado por Deus, no mundo que foi criado por Deus, mas não veem Deus, pois estão se afogando em seus ídolos e se afogando juntamente com seus ídolos!
Somos transformados pelo que vemos e ouvimos. Aqueles que fixam seus olhos nos ídolos se tornam como eles. Aqueles que fixam seus olhos em Cristo vão sendo transformados, de glória em glória, à imagem de Cristo (2Co 3.18). O que vemos e ouvimos produz em nós, portanto, vida ou morte. O que vemos e ouvimos testemunha se somos vivos ou mortos.
Tenho insistido nessa ideia de que o que contemplamos nos molda. João apresenta pelo menos três transformações pelas quais passamos ao vermos e ouvirmos Cristo.
A primeira delas tem a ver com o aspecto da proclamação. Não deveria nos surpreender que aquela pessoa que, tendo sido impactada pelos hábitos de alimentação saudável (low carb, por exemplo), ou por uma vida que saiu do sedentarismo em direção ao crossfit, nos fale sobre isso. A pessoa que vive no mundo jurídico normalmente tem seu linguajar alterado pelo meio, assim como aquele que ama ver séries do Netflix se regozija comentando sobre o último episódio da “melhor série do ano”. Nós falamos acerca daquilo que temos visto e ouvido! Não é a toa que João repete tantas vezes que ele não só via e ouvia Cristo, mas o proclamava, dava testemunho dele, o anunciava. Os que amam a Cristo, os que vivem no mundo de Cristo, compartilham o evangelho de Cristo. Suas conversas são permeadas pela realidade de que Cristo é o Senhor. Seu cotidiano, ainda que aparente ser igual ao de muitas pessoas que vivem ao seu redor, possui uma motivação diferente e uma finalidade diferente: “O fim principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”.
A segunda transformação experimentada pelos que veem e ouvem a Cristo é a realidade de que eles buscam viver e ouvir a Cristo em comunhão com outras pessoas. A vida cristã é uma vida em comunhão com o Pai, com o Filho, com o Espírito Santo e com aqueles que foram alcançados pelo evangelho. Esse é um dos motivos pelo qual proclamamos, para que novas pessoas passem a ter comunhão com Deus e comunhão conosco. Quando habitamos no mundo de Deus, na cidade celestial, não habitamos nela sozinhos. Não é a toa que nosso Senhor nos convocou a compartilhar o pão até que ele venha! Não é sem propósito que nos reunimos aos domingos para ajustar o nosso coração em conformidade com a liturgia da Palavra. O cristão não é um peixe solitário, mas é alguém que sempre nada em cardume.
Finalmente, é na questão da satisfação que se situa a terceira consequência que ver e ouvir Cristo tem. Agostinho começa suas Confissões dizendo para Deus: “Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti.” Nessa singela sentença, Agostinho nos lembra que o homem sem Deus caminha inquieto e insatisfeito. Os ídolos são exatamente aquelas coisas ou pessoas em quê buscamos nos satisfazer em substituição a Deus. São as coisas ou pessoas que amamos com o amor que deveria ser exclusivamente direcionado a Deus. A grande questão é que fomos feitos para Deus e só nele temos nossa satisfação e alegria! Observem como João termina o texto que lemos nos revelando que todas essas coisas de ver Cristo, tocar Cristo, ouvir Cristo, proclamar Cristo, ter comunhão com irmãos em Cristo e ter comunhão com o próprio Cristo são fundamentais “para que a nossa alegria seja completa.” Quando vemos e ouvimos Cristo, o lugar em que procuramos nossa satisfação é deslocado para o lugar certo, pois é somente em Cristo que podemos experimentar alegria plena.
Os rituais, as liturgias, os hábitos seculares podem até promover algum tipo de satisfação, mas nunca a verdadeira satisfação. Os ídolos prometem descanso e até, por certo tempo, parece que eles conseguem nos fazer repousar, mas é tudo ilusão! Os ídolos não cumprem o que prometem. Os olhos e ouvidos não encontram descanso em outro lugar, o coração não encontra repouso em outra pessoa que não seja Cristo! Somente a habitação em Cristo nos leva a satisfação plena. Consideremos, portanto, atentamente o que temos visto e ouvido, para que possamos declarar, como João, “tenho visto e ouvido aquele que era desde o princípio, o verbo da vida, o filho de Deus, Jesus, o Cristo, e nele tenho encontrado plena alegria.”